No meu texto da semana passada no “Crônicas de um ano inteiro”, a minha intenção era falar sobre o lançamento do novo livro de Augusto Cury, mas estendi um pouco a reflexão e acabou se tornando uma dúvida: por que consumimos lixo quando existem tantas opções boas por aí?

Boa leitura!

 

Dê ao povo o que ele quer

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Não faz muito tempo, adotei uma cachorrinha de rua. Passear com um cachorro pelas ruas da cidade muda a perspectiva em muitos níveis. Em primeiro lugar, pelo assustador número de pessoas morando nas calçadas e embaixo de marquises. Em segundo, pela quantidade abissal de lixo que produzimos e acaba sujando as ruas. A minha cachorrinha tem um faro invulgar para localizar ossos, comida apodrecida e outras porcarias, o que me faz ficar em constante processo de desvio, seja de corpos jogados sem esperança por aí, seja de lixos espalhados por todos os lugares.

Se existe algo irritante para quem possui cachorro é que, apesar de ter ração disponível em casa, eles sempre querem comer o lixo que encontram nas calçadas. Talvez seja o gosto pelo proibido ou um gesto de desafio, mas, mesmo com a minha mais restrita vigilância, basta um segundo de desatenção e a cachorrinha está com algum alimento de origem desconhecida e malcheirosa na boca. Soa ilógico que, mesmo tendo ração de boa qualidade em casa, o animal fique genuinamente feliz ao localizar uma das imundícies que conspurcam a rua da cidade, mas é o que acontece.

Não é tão diferente de nós. Mesmo tendo acesso à maior quantidade de informações que qualquer pessoa já possuiu no mundo, gostamos de chafurdar no meio das porcarias. Entre a inovação delirante de um novo pensamento e a ideia óbvia que já vimos inúmeras vezes, preferimos o conhecido ao invés de investir no diferente. O cinema já notou isso, chegando ao ponto de descrever, inclusive nos minutos e segundos exatos, o momento em que um personagem deve ser apresentado, quando o vilão (ou conflito) deve surgir, o instante em que aparecerá o “problema insolúvel”. A arte moderna possui os mesmos esquemas massificados de produção, e até as suas “rupturas” são programadas para escandalizar dentro de uma certa ordem. Certa vez, participei de um grupo de teatro cujas reuniões, toda vez que alguém dizia que precisávamos escandalizar para chamar atenção, uma ou duas atrizes gritavam “Então eu tiro a roupa!”, como se tirar a roupa fosse garantia de polêmica.

Na literatura, vemos mais do mesmo. Os livros se tornaram previsíveis e – o que é mais estranho – estão eivados de erros básicos de gramática e pontuação. Ler um livro é ler qualquer obra; elas não significam mais nada. Em um ensaio publicado no seu livro “Crítica literatura e narratofobia”, o crítico Rodrigo Gurgel afirmou que, certa vez, pegou uma pilha de livros contemporâneos e sentou-se em uma livraria para lê-los. Ao final da leitura, notou que, na verdade, tinha lido um único livro escrito de nove formas semelhantes. Estamos tão acostumados com fórmulas prontas que é difícil encontrar algo realmente empolgante. Nos seus primórdios, a literatura servia para as pessoas esquecerem as suas vidas e pensarem em outras realidades, que acabariam repercutindo na sua forma de ver o mundo. Nos tempos atuais, a literatura virou uma corrida para ver quem escreve mais rápido e lança o livro mais adequado ao gosto do leitor.

Na semana passada, duas livrarias de rua tradicionais de Porto Alegre decidiram fechar. Assim como a minha cachorrinha, preferimos ficar com os ossos bonitos que se exibem em livrarias paquidérmicas com suas pilhas de obras iguais ao invés da ração bonita e nutritiva representada por livreiros que não só leram, mas sabem indicar livros fora do convencional. Restam cada vez menos lugares para achar livros de verdade. Em breve, os leitores porto alegrenses estarão sentenciados a serem atendidos por livrarias insossas de shopping centers, sempre com as suas mesmas luzes e formatos de prateleira, sempre com os mesmos Best Sellers cansados que algum editor ansioso por lucro disse que devemos ambicionar. É uma época difícil para ser leitor: nunca se lançaram tantos livros, e nunca foi tão difícil achar um único livro bom no meio desse tsunami literário.

No ano passado, chegou às minhas mãos o segundo livro de contos de Rafael Sperling, “Um homem burro morreu”. Para quem não conhece, o Rafael é um dos escritores brasileiros mais empolgantes da atualidade, capaz de introduzir o surrealismo dentro desse cotidiano já surreal em que vivemos e transformar o bizarro em parte da nossa experiência. Recordo em especial um conto desse livro, “Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon”, que também é o título de uma reportagem dessas revistas de atualidades que infestam nosso dia a dia com as suas irrelevâncias. Por qual motivo lemos algo que se limita a enunciar um evento tão mínimo? Ao invés de buscar a informação importante, perdemos tempo lendo algo que não vai nos acrescentar nada. No conto, o fato mínimo – um artista atravessar uma rua, algo que todos nós fazemos – vai se transformando em um evento cada vez mais significativo, transitando da comédia para a tragédia, do indiferente para o essencial, da insignificância ao sério. Interpreto esse conto como uma crítica velada à nossa sociedade de consumo, à sua habilidade de criar heróis vazios e, principalmente, vejo esse conto como uma bem construída metáfora dos nossos tempos, em que vivemos conformados com o lixo da desinformação claramente disseminada pela mídia para nos fazer perder tempo ao invés de buscar as grandes variáveis humanas que se escondem dentro dos pequenos fatos do cotidiano.

Hoje, disseram-me que o Augusto Cury lançou um livro novo. Ao procurar mais dados a respeito dele, fui informado – antes mesmo de saber o conteúdo de dita obra – que a sua tiragem inicial era “histórica”. O resumo da “trama” diz que o dr. Marco Polo, um ateu abalado por uma perda pessoal, vai a congresso científico em Jerusalém e é surpreendido por uma pergunta: Jesus Cristo sabia gerenciar a própria mente? Começa a ler o Evangelho de Lucas tentando responder a essa dúvida, chegando a conclusões que estremecerão sua ausência de convicções religiosas. É difícil comentar algo que se propõe a dar uma lição de moral antes mesmo de folhear as suas páginas, mas olho tal resumo e penso em quantos leitores disputarão esse osso enquanto comidas suculentas dormitam nas prateleiras. Dê ao povo o que ele quer, diziam os antigos romanos. E o povo prefere ler “O homem mais inteligente do mundo”, de Augusto Cury, ao invés de “As aventuras de Marco Polo”, do próprio, ou “Jerusalém Libertada”, um épico de Torquato Tasso, ou o próprio Evangelho de São Lucas, um dos textos bíblicos mais poéticos e metafóricos. Ainda preferimos os ossos que o mercado editorial despeja no chão em lugar das maravilhas que se escondem fora dos holofotes.

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