Aproveitando a diminuição do trabalho no final do ano, enfim consegui concluir a leitura desse pequeno – e encantador – livro de Patti Smith, “Devoção”, lançado em 2018 pela TAG e pela Companhia das Letras (mas está prevista uma nova edição para 2019), com tradução do Caetano Galindo.
Dividido em três partes que podem ser lidas separadamente, como histórias fechadas em si, é um livro que trata do ato de escrever de forma honesta e madura. Ao contrário do que alguns pensam, escrever é algo que não conseguimos dissociar da vida: não existe um momento em que sentamos e escrevemos, estamos sempre escrevendo no interior das nossas cabeças, e o ato de transformar algo em palavras e frases é o último estágio de uma longa cadeia que perpassa por dentro dos compromissos do cotidiano, das obrigações familiares, do cansaço físico, do tempo perdido em deslocamentos, das memórias do passado, dos sonhos que tivemos que descartar e das nossas pequenas realizações. Talvez seja essa constante instabilidade – e recorro novamente à uma expressão de Julio Cortázar que, para mim, define muito do desconforto do criador, “uma sensação de não estar de todo” – que concede substância para a criação. Mais do que a elaboração técnica, o que parece ser muito importante para escrever é a capacidade de dosar o que somos e vivemos com aquilo que acaba vindo ao mundo. Escrever é tirar o supérfluo do que escrevemos e deixar só o essencial.
Na primeira parte do livro, “Como a mente funciona”, Patti Smith começa descrevendo um filme que assistiu, compartilhando as suas inquietações acerca da leitura de um livro de Patrick Modiano antes de viajar para Paris. Sente que uma história se aproxima, mas, nesse momento, não consegue ainda vê-la, só pressentir a sua chegada. Está com o caderno e com a caneta a postos, mas a história ainda existe mais como névoa do que como realização. Enquanto não chega, a escritora descreve a sua viagem para Paris, as recordações de outra visita que fez na cidade com a sua irmã, o seu interesse por memorabilia ligada a escritores (em especial casas e cemitérios onde eles estão enterrados), o corte de cabelo de Simone Weil. Em um determinado momento, sem nenhum anúncio ou epifania, Patti simplesmente sente que a história precisa vir à tona, então senta em um parque deserto e se entrega ao ato de escrevê-la. Ela própria constata o caos da criação: “Quase sempre a alquimia que dá origem a um poema ou a uma obra de ficção fica escondida na própria obra, se não incrustada nas serpeantes cordilheiras da mente. Mas nesse caso eu podia rastrear uma pletora de provocações, uma floresta de bétulas, o corte de cabelo de Simone Weil, cadarços brancos de uma bota, um saquinho de parafusos, a arma existencial de Camus.”
Na segunda parte, “Devoção”, encontra-se a história que Patti Smith escreveu. É interessante notar como as fontes de inspiração mostradas na primeira parte aparecem de maneira inesperada, cada uma delas fornecendo um pequeno elemento que fará parte do todo. Não existe uma relação direta de causa e efeito: podemos detectar alguns elementos que inspiraram Patti, mas não todos. Com uma prosa segura e belamente construída, a autora apresenta a história de Eugenia, uma menina que se sentia realizada ao patinar e acaba sendo apadrinhada por um homem mais velho, uma pessoa misteriosa e rica, com quem desenvolve uma relação um pouco paternal, um pouco sexual, mas sempre imersa em fascínio e auto-conhecimento. De forma hábil, Patti faz o leitor acompanhar a jornada de Eugenia em busca de si mesma e das suas origens, que estão menos nos seus pais do que na sensação angustiante de ser uma criatura sem passado e, por consequência, sentir-se sem futuro.
Na terceira e última parte, “Um sonho não é um sonho”, a autora retorna à narrativa em primeira pessoa, contando o convite que recebeu para visitar a casa de Albert Camus e a oportunidade de ler o original de “O primeiro homem”, o livro que Camus trabalhava pouco antes de morrer. Refletindo sobre o que leva uma pessoa a escrever, reflete sobre o vazio intrínseco a tal ato: “Há pilhas de cadernos que delatam anos de esforços abortados, euforia esvaziada, passos incansáveis pelo chão. Precisamos escrever enfrentando miríades de lutas, como quem domestica um potro voluntarioso. Precisamos escrever, mas não sem um esforço consistente e não sem certa dose de sacrifício: para dar voz ao futuro, revisitar a infância e para dar rédea curta às loucuras e aos horrores da imaginação antes de oferecê-la a uma vibrante raça de leitores.” Ainda que eu não simpatize muito com esse hábito de escritores de considerar o ato de escrever algo extremamente doloroso (também existe um componente de prazer dentro dessa “dor”), parece um ótimo resumo de como nos sentimos: necessitamos controlar e pacificar a imaginação, exercitando exaustivamente a técnica literária através de tentativa e erro, sabendo que, no final do processo, existe um leitor ávido para nos ler e descobrir algo a respeito de si mesmo, algo que até então não conseguia colocar em palavras.
Foi mais ou menos o que aconteceu comigo. Ao final de “Devoção”, Patti Smith descreveu que, quando estava com os manuscritos de “O primeiro homem” de Camus na mão, foi acometida pelo ímpeto de sair correndo, subir as escadas da casa, trancar-se no quarto que pertenceu ao escritor e começar a escrever algo, qualquer coisa. Como justificativa, ela disse que “esse era o poder decisivo de uma obra singular: o chamado à ação. E eu, repetidamente, sou tomada por uma arrogância orgulhosa que me leva a acreditar que posso atender a esse chamado”. É uma sensação que às vezes me acomete, quando sinto-me tomado pela perfeição de uma obra: a vontade de parar tudo o que estou fazendo e ter a pretensão – impossível – de escrever algo similar ou até mesmo superior, como se a capacidade criativa fosse algo que passasse por contágio e nos arrebatasse.
Apesar de curto, “Devoção” apresenta uma poderosa reflexão sobre o ato de escrever. Desconstruindo os mecanismos criativos que constituíram a base para uma história, Patti Smith mostra que a literatura conversa com a vida e com o tempo mais do que com a sociedade (ainda que não se descole dela). Por meio de uma prosa muito bem construída, com exageros estilísticos aqui e ali que trazem mais brilhantismo ao texto, a escritora mostra a persistência da literatura como forma de expressão das angústias humanas e, se não consegue responder o motivo pelo qual escrevemos, deixa aberta uma possibilidade: escrevemos por que alguém precisa segurar o espelho que irá fascinar ou repugnar o leitor.