Imaginem a cena: o autor fica meses, às vezes anos, da sua vida preso em uma história. As palavras vem e vão, depositando-se na folha como impurezas trazidas por uma onda do mar, e cabe ao escritor transformar a areia insossa em vitral de igreja. Ao mesmo tempo, é necessário refletir no ritmo, na cadência da trama. Enquanto isto, personagens desobedientes entram em dilemas e tentam escapar dos seus limites, sempre se esgueirando por salas em que não devem entrar, assumindo atitudes incompatíveis com a sua personalidade volátil. Muitas e muitas horas de trabalho solitário, sofrido e lento. Ao final, no último ponto, o autor pensa que se libertou do seu demônio: se não é aquilo que imaginou, foi o que saiu, e é suficiente. O papel aceita tudo.

Então, o autor deseja algo mais para que a relação com a Literatura exista no mundo real (pois, até então, tudo não passa de um escrito). Ele precisa do segundo leitor, aquele que pode ler e conversar sobre o livro, cuja impressão pode acrescentar novos elementos na escritura. De tão próximo da história, o autor pode acabar se confundindo; o segundo leitor é aquele que, com olhos distintos, verá a obra como ela realmente é, como será vista pelos outros. É prudente escolher um amigo ou alguém que pensa igual. Não podemos nos esquecer que escritores são criaturas sensíveis.

Sensíveis… e malandros. O autor manda a obra para uma mulher com quem esteve amorosamente envolvido, muitos anos antes, e com quem, hoje, só restou uma relação de amizade quase fraterna. Ele tem seus motivos. É uma mulher inteligente, detentora de uma vasta gama de conhecimentos culturais. Não só isso: patrocina escritores, pintores e escultores e, ao seu redor, se concentra a fina nata intelectual de Paris. A leitora ideal para aquele tipo de livro.

Momentos de tensão, enquanto o livro vai para a leitora e não volta. Como estará a leitura? Estará agradando ou desagradando? Secretamente, o autor espera elogios, mas a verdade será suficiente. Todo dia ele olha pela janela, esperando o correio. E, em um dia indeterminado,  recebe esta carta como resposta:

“Não vou tergiversar, mas digo apenas que estou surpresa que você, com a sua imaginação, com a sua admiração por tudo o que é belo, que justamente você tenha escrito, tenha se divertido em escrever algo tão horrendo como este livro! Acho tão feio tudo isto! – e o talento que você colocou neste livro duplamente detestável! Para dizer a verdade, não li palavra por palavra; na verdade, conforme mergulhava aqui e ali no livro, sentia-me sufocar como aquele pobre cachorro que jogam no ‘Grotto del cane’ [Gruta do cão].

Não entendo como você pôde escrever tudo isso! – onde não há absolutamente nada de belo, nem de bom! E certamente virá o dia em que você vai perceber que tenho razão. Para que revelar tudo que é esquálido, miserável… ninguém consegue ler este livro sem se sentir mais infeliz e ruim.

Não sei quais seriam os sentimentos de sua mãe, mas ela deve sentir um desgosto mortal ao ver uma semelhante obra!… agora chega de madame de Bovary [sic] e não falemos mais nisso!”

(Carta de Gertrude Tennant para Gustave Flaubert, enviada em 1857).

Com certeza, foi um balde de água fria nas pretensões de Flaubert. Mas ele insistiu: lançou o livro. Irei passar ao largo das discussões que foram realizadas com o editor ou das dúvidas que outros leitores prévios lançaram sobre a viabilidade da história de Madame Bovary. Basta saber que a história foi apresentada aos leitores em fascículos – e com pequenos cortes.

Quando lançado, podemos dizer que poucas obras despertaram tantas críticas negativas quanto “Madame Bovary”. Toda a sociedade literária parisiense se horrorizou. Era o oposto daquilo que se considerava literatura; um grito de subversão em um universo que se pretendia ordenado. Consultando os manuais de História da Literatura, percebemos que os críticos lutaram para ver quem fazia a crítica mais ferina e destruidora do livro, em um rol de criatividade que poucas vezes se viu na recepção de uma obra.

E Emma Bovary continuou incólume.

Não suficiente, Gustave Flaubert foi processado, em conjunto com o editor, Laurent Pichat. Foi um processo desgastante, em que se analisou a pornografia e os maus exemplos dados pelo livro. Flaubert acabou sendo inocentado, mas antes cunhou a frase que sintetizaria o processo: “Emma Bovary c’est moi”. Uma frase que, mais do que uma defesa jurídica, também é um estatuto da liberdade da criação artística.

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Lendo a carta enviada por Gertrude Tennant, as reações virulentas dos críticos e a história do processo judicial por indecência, é impossível não pensar na rejeição. Em algum momento da vida, todos irão sofrê-la. Quando se trata de algo que foi feito com amor e dedicação, a rejeição é ainda mais dolorosa, mais impactante. Em certos momentos, os críticos deixaram de analisar o livro e passaram a ridicularizar a figura do homem que lhe engendrou. Na carta de Gertrude, até a memória da mãe de Flaubert foi invocada para lhe demover.

A História da Literatura só conta a luta de Flaubert e a sua persistência. Ninguém recordará das incertezas que o autor teve ao ser confrontado com os problemas da sua criação. Ninguém saberá das noites que Flaubert passou acordado pensando nas críticas que lhe atingiam. Ninguém saberá se ele chorou em silêncio ou se adoeceu de agonia, ou se descarregou a raiva recolhida em algum cachorro incauto que atravessou o seu caminho. Ninguém saberá se não teve medo de ser preso por causa daquilo que a sua imaginação deu origem. Ninguém nunca descobrirá se ele chegou a odiar Emma Bovary e as suas traições.

Muitos autores tiveram obras seminais rejeitadas em determinados momentos da sua trajetória. Pintores tiveram quadros recusados, músicas foram descartadas como inaudíveis. Os verdadeiros artistas persistiram no esforço de mostrar a arte que atormentava o seu espírito. Insistiram até o limite da insanidade; mesmo rejeitados pelo público e pelos críticos, enfrentaram a rejeição, confiando somente na força da sua produção.

Basta ser humano para saber o que é ser rejeitado. Todos nós já fomos. Muitos não resistiram e se renderam ao establishment: desistiram de amores, de carreiras, de sonhos. Outros continuaram lutando, não interessa o quão certa ou equivocada seja a sua visão. No final das contas, só existe uma forma de resistir à rejeição: acreditar na própria verdade. Quanto mais energia se conseguir desta visão, mais fácil será resistir à violência natural do mundo.

A questão nunca é ser derrubado pelos outros. Tal fato é inevitável. A questão, sempre, é como iremos nos levantar.

Todos sabem como terminou a história de Flaubert: “Madame Bovary” é considerada a obra que deu início à literatura realista. Sobreviveu aos tempos e, até hoje, é lida e admirada. Pensar que o livro esteve tão próximo de desaparecer do mundo (por influência de amigos, da sociedade, da família, da crítica e até mesmo da Justiça), que bastava um desvio ou uma hesitação para que a história de Emma Bovary nunca fosse lida, é algo que me deixa pensando em quantas pessoas e ideias originais foram sepultadas pelo medo da sua recepção.

Também me faz pensar em quantos livros vi o autor buscando a complacência do público, com medo de ousar e ser descartado. É impressionante a quantidade de artistas que não sabe lidar com uma eventual rejeição; depois que se lê por tempo suficiente, é possível ver o instante em que o escritor podia tentar o pulo mais ousado… e refugou, com medo de ser rejeitado. Se tem algo que me indigna, nas minhas leituras, é a covardia e o medo do autor e, acreditem, dá para sentir o cheiro adocicado do pavor saindo da história.

Talvez a maior prova que qualquer pessoa pode passar é a rejeição. Somente na batalha a pessoa é capaz de afirmar a sua verdade até para si próprio. E, neste aspecto, o exemplo de Gustave Flaubert é consolador: a opinião dos outros não importa, o que realmente vale a pena é lutar pela sua alma. Bom momento para lembrar da frase que servia de mote para o escritor francês: “seja regular e ordenado na sua vida, para que você possa ser violento e original no seu trabalho”. Aí está o segredo.

5 comentários em “Sobreviver à rejeição

    1. Alexandra, sabes que eu também achei um conselho que deve ser lido (e relembrado) todo dia? Do que vale a pena viver sem medo de se queimar e se consumir pelas chamas, não é?

  1. “Dá para sentir o cheiro adocicado do pavor saindo da história”… É verdade, quando se exita ao escrever, nós mesmos torcemos o nariz!

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