Na minha coluna dessa semana no “Obras Inquietas” lá no Artrianon (www.artrianon.com), eu escrevi sobre uma pintura de Pascal Dagnan-Bouveret, “Marguerite no sabá”. Essa é uma cena decisiva do “Fausto”, de Goethe: o momento em que Fausto está em um sabá com Mefistófeles e olha Marguerite, a mulher que seduziu e engravidou, emergir como um espectro de dentro do inferno, o corpo do filho nas mãos.

Um detalhe interessante sobre a pintura: Dagnan-Bouveret costumava usar fotografias para pintar os quadros, mas, nesse caso, usou como modelo uma atriz – Suzanne Delvé – e mais as fotografias que tirou, tudo para extrair o máximo de tensão da cena. E escolheu muito bem o momento em que a imagem se sobrepõe à literatura e crava seus olhos no leitor. Impossível ler a cena de novo sem lembrar de novo desse quadro e, no meu texto, tentei dar uma voz de desesperança à Marguerite, revelando a sensação de inutilidade do seu sacrifício, sem esquecer o mito fáustico, mais Goethe, mais Thomas Mann – acendi vela para um bocado de santo.

Boa leitura.

“Marguerite no sabá” (1911), Pascal Dagnan-Bouveret

 

Maldito o momento em que escutei as palavras sedutoras que escapavam da sua boca como as serpentes ondulam ao sol; maldito o instante em que acreditei no amor. Encare o resultado da sua luxúria e da minha danação. Não, não desvie o olhar; não deixe a vergonha toldar os seus pensamentos. Olhe o crime que cometi por você – contemple o corpo do nosso filho, fruto morto do pecado em que foi concebido. Não preste atenção aos cânticos lascivos desses outros perdidos que vieram encontrar o diabo que mora dentro de si mesmos, nem nas palavras de adulação que lambem a noite com o hálito frio da morte; sinta o calor das chamas a que fui condenada pelo erro de acreditar em você. Nunca serei perdoada. Nunca serei capaz de me perdoar. Responda, então: valeu a pena sacrificar o amor pelo conhecimento? Eu perdi tudo para merecer o sentimento que, iludida, pensei existir na voracidade urgente das suas pupilas; perdi o meu próprio respeito, perdi a família, perdi a alma, perdi o nosso filho, e foi em vão, pois perseguia a sombra de um morto, a neblina insondável que habita isso que você chama de espírito. Olhe o fundo da minha angústia, maldito Fausto, e conheça a imensidão da sua derrota. Eis o nosso filho, morto por causa da soberba do pai e da cegueira ingênua da mãe. As crianças sempre pagam pelos erros dos seus pais. Consegue escutar os lamentos e gritos que se despegam do inferno a que fui condenada? Pois o pior de todos os infernos mora na crueldade da minha memória, no fantasma do filho que condenei à morte por ter escolhido o homem errado para ser seu pai, por ter escolhido você, esse pálido esboço de ser humano.

Texto originalmente publicado no link https://artrianon.com/2018/01/21/obras-inquietas-53-marguerite-no-saba-1911-pascal-dagnan-bouveret/

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