Em qual momento deixamos de sentir piedade e passamos a nos guiar por uma lógica utilitarista, na qual somente os úteis devem ser preservados e os que consideramos “inúteis” descartados?

Essa foi a pergunta que passou a me assombrar desde o momento em que assisti “Os Canhões de Navarone” (1961), filme inglês que conta a história de como, na Segunda Guerra, um grupo de soldados invadiu a ilha de Navarone com o intuito de explodir os dois canhões que impediam o resgate de uma parte do exército aliado acuada na ilha de Kheros, na Grécia.

O chefe da expedição, o major Franklin, sofre um acidente logo no início da delicada tarefa, quebrando uma perna. Esse problema de saúde iria prejudicar o seu deslocamento e, em uma missão na qual a surpresa e a velocidade eram fatores essenciais, não é difícil imaginar que um homem de perna quebrada atrapalharia o objetivo maior, que era destruir os dois canhões e salvar centenas de soldados em perigo.

Em um primeiro momento, ainda imbuídos do espírito heroico, o grupo improvisou uma maca e passou a carregar o homem ferido. No entanto, o tempo corria cada vez mais rápido. Os homens precisavam escalar montanhas íngremes, esconder-se em cavernas, deslizar por entre florestas, e viam o objetivo distante por culpa do peso extra que precisavam carregar. Isso os levou ao questionamento inevitável: não seria melhor descartar o homem ferido, deixando-o para trás? No entanto, quando ele fosse capturado, poderia acabar entregando os planos, e isso inviabilizaria ainda mais a missão.

Consequência lógica desse impasse foi se perguntarem se não seria melhor matar o major ferido. Isso o salvaria da dor da perna quebrada (a qual estava gangrenando) e ainda evitaria que os alemães descobrissem os detalhes do plano.

É evidente que o major tinha um dedicado amigo entre os soldados, interpretando o contraponto da ideia para a plateia, que levantou toda a sorte de objeções ao assassinato do companheiro, indo desde a chantagem até as ameaças e súplicas. Justiça seja feita: o próprio major Franklin percebeu que era um estorvo e tentou se matar, mas foi impedido. E a todas essas o tempo correndo e a missão cada vez mais difícil e distante, enquanto carregavam o ferido.

Mesmo contra todas as evidências de que o sacrifício para manter o companheiro vivo era desproporcional, os homens não capitularam. Mesmo tendo várias oportunidades de matá-lo, mesmo com o aumento da dor que ele sofria na perna quebrada, o grupo de soldados deixou o homem vivo. Só o abandonaram nas mãos de um general grego à serviço dos nazistas que, com toda a galhardia possível para o momento, se comprometeu pessoalmente a prestar todos os cuidados médicos para o ferido, dizendo que “não era assim que pessoas corretas se portavam”. Na última cena em que aparece no filme, o major ferido está no hospital alemão quando escuta a destruição dos temidos canhões, e comemora em silêncio a vitória dos companheiros.

Algo nessa insistência em salvar a vida do soldado machucado, mesmo que com sacrifício pessoal e colocando em risco o objetivo maior, me incomodou. Não em relação à nobreza do gesto, mas por ver o quanto modificamos a nossa visão de mundo nos parcos 56 anos que nos separam do filme (vale realçar que o único personagem ficcional acrescentado na história real da destruição dos canhões de Navarone foi justamente o major Franklin, ou seja, a questão “devemos manter vivo ou matar aquele que nos atrapalha?” foi intencionalmente acrescentada ao filme).

Nos tempos atuais, teríamos concordado em silêncio com a morte do major ferido. Teríamos inclusive sugerido tal opção em primeiro lugar, antes mesmo de tentar salvá-lo (até antes mesmo de tentar lhe aplicar remédios), por ser o caminho mais lógico em busca do bem maior: salvar os 2.000 soldados sitiados em Kheros. A vida de um é menos valiosa do que a vida de muitos, pensaríamos com toda a tranquilidade, enquanto comemos pipoca e vemos algum soldado explodir a cabeça do “estorvo” azarado que estava no caminho da missão.

Dificilmente alguma pessoa no mundo atual concordaria em manter vivo um homem ferido. Pensariam que era melhor uma solução piedosa, uma eutanásia rápida para lhe “impedir de sofrer”. Mentira: na verdade, preferimos matá-lo por que ele está atrapalhando. Tentar salvá-lo seria colocarmo-nos em risco, pensaríamos como consolo, ao invés de ver que seguir o caminho piedoso é muito mais difícil do que aparenta.

É mais fácil matar o obstáculo do que tentar resolvê-lo. Todas as elucubrações e voos mentais que realizamos para matar o major ferido é para esconder o fato de que somos covardes e, em um dilema moral, geralmente obedecemos a solução mais simplista, posto que mais cômoda. Nenhum de nós pensa em salvar o homem que se machucou por uma questão de azar, preferimos descartá-lo o quanto antes, e, para isso, culpamos a vítima, culpamos o destino, culpamos a coincidência, culpamos qualquer coisa se, assim, conseguirmos ter um farrapo de justificativa, algo capaz de nos fazer dormir bem à noite.

Confesso – ora, sou um ser humano atual, não consigo escapar de mim – que a insistência em preservar a vida do homem ferido me irritou. Não foram poucas as  vezes que pensei “dá logo um tiro nele e acaba com essa questão”. Era visível que perdiam muito tempo tentando salvar alguém que não tinha chance de sobrevivência, parecia mais teimosia do que heroísmo.

No entanto, foi somente ao final do filme, quando vi o major Franklin vivo (justamente por terem o deixado para trás que o plano acabou se tornando um sucesso, ainda que graças àquela dose de causalidade que só existe na ficção, plantar uma mentira no homem a ser interrogado para que a mentira se espalhe entre os inimigos), que percebi que a maior vitória não foi destruírem os canhões de Navarone, mas não terem cedido aos ímpetos de selvageria e comodismo que autorizariam a morte de um inocente por mera conveniência. O verdadeiro heroísmo do filme foi não terem capitulado nos seus valores humanos, e terem mantido a piedade por um semelhante mesmo quando a lógica apontava o contrário. Lembra a famosa frase de Spock em “Jornada nas Estrelas II – A Ira de Khan”: “a lógica diz que as necessidades de muitos se sobrepõem às necessidades de poucos, ou de um só”. Nem sempre isso é verdade.

Não pude deixar de pensar em quantos filmes, séries e livros defendem com tranquilidade a morte de uma pessoa em benefício de outras. Está tão arraigado no nosso imaginário que bocejamos quando esse momento chega e dizemos com exasperação “tá, mata logo ele”, como se estivéssemos no anfiteatro romano esperando a próxima atração sanguinolenta. Deixamos de pensar que toda a vida é preciosa, e passamos a ver que algumas vidas são mais preciosas e necessárias do que outras, ou que algumas pessoas vieram ao mundo com o intuito único de morrer e deixarem de nos estorvar.

Existe uma mudança no pensamento atual, e isso aparece claramente nos filmes. Não há espaço para tiros de alerta ou para balas distraídas; a precisão na morte do outro tornou-se esteticamente brilhante, parece uma dança. Em filmes como “John Wick – De Volta ao Jogo” ou no seriado do “Justiceiro” na Netflix, em algumas cenas de violência percebe-se o mesmo “modus operandi”: o “heroi” (??) dá sempre dois tiros certeiros, o primeiro em algum órgão ou membro incapacitante, tipo braço, perna ou barriga, e o segundo – à queima-roupa – na cabeça do inimigo. De duas em duas balas, ele vai deixando uma fileira de mortos cujos rostos nem sequer conseguimos ver. Máxima precisão com o mínimo de desperdício de balas. Até mesmo matar pode ser um gesto econômico.

Não estamos mais vivendo na época em que salvar uma vida era salvar um mundo inteiro. Estamos no período em que matar com efetividade é mais importante do que perder tempo preservando vidas. Deixamos a piedade de lado e nos tornamos mais brutais e práticos. O mundo é dos fortes, e não dos que possuem valores sólidos.

Compreender – e aceitar isso como algo inexorável – talvez seja a melhor forma de entender o mundo em que estamos. Um local repleto de pessoas procurando explicações tênues para justificar as suas falhas de caráter. Um local em que culpamos as vítimas para esconder as nossas fraquezas. Um lugar em que é melhor destruir do que salvar.

2 comentários em “Duas balas, e o fim da piedade

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