No domingo passado, em conversa com os meus pais, eles perguntaram se tinha realmente acontecido um fato que narrei no Facebook. Transcrevo aqui:

“Resumo breve da história: na minha rua, um cara tentou incendiar um ônibus. Os passageiros impediram e bateram nele. A polícia chegou e o salvou. Ele foi preso. Fim da história.
Algumas considerações:
– quando o cara anunciou a sua intenção, o motorista e o cobrador saíram correndo do ônibus. Foram bem ligeiros. Então, se algum dia motorista e cobrador saírem correndo do nada, tem alguma coisa errada acontecendo;
– não sei o que o cara pensou, mas, se não pretendia se imolar, foi o pior plano de assalto que já vi;
– não se tenta ser engraçadinho ou ter planos ousados em um ônibus cheio de gente com camisas de banda de heavy metal. Simplesmente, não;
– a polícia agiu de forma muito controlada e ordeira. Como advogado, eu esperava alguns excessos, um abuso de poder básico, uma ofensinha aos direitos humanos aqui e acolá, um tapa desnecessário, estas coisas, e não. Chegaram, separaram, acalmaram e ainda disseram para o cara que ele devia ter muita vergonha do que tinha feito. Além de apanhar e ser preso, levou uma baita lição de moral;
– a cereja do bolo da história: o cara não carregava combustível consigo. Em determinado momento da refrega, o pessoal que batia nele entrou numa paranoia de que o bandido tinha um cúmplice dentro do ônibus, e este sim carregava o combustível. A polícia foi investigar essa possibilidade e, surpresa surpresa, achou um outro rapaz com o combustível. O mais espantoso era que o cara também tinha ajudado a surrar o seu comparsa. Era inclusive um dos mais entusiasmados, dos que mais chutava e dos que mais gritava “vamu taca fogo nele!” (o que explica tudo, alias, se tivéssemos sido mais atentos, teríamos visto). Sem saber, provando que a vida imita a literatura, o cara usou a estratégia que Edgar Alan Poe descreveu em “A carta roubada” – o lugar menos esperado para se achar algo é o lugar óbvio. O comparsa que tenta se mimetizar com a urbe linchadora… esse sim foi um bom plano.”

É evidente que sim. Os fatos aconteceram como descrevi. Poupei as pessoas de alguns detalhes enfadonhos, como os chutes fortíssimos que deram nas costas do bandido (e que só podiam ter como objetivo quebrar a sua coluna, mas sem sucesso) ou o rastro de sangue deixado quando os policiais arrastaram-no até o camburão e o levantaram. Ou, ainda, o rapaz de cabelos compridos e camisa do Megadeth que, alterado pela bebida, deu um “peitaço” em um dos policiais, cuja única reação foi erguer uma espingarda quase do tamanho da sua perna, e perguntar “Meu, sério mesmo que tu quer fazer isso? SÉRIO MESMO?, e o cara se aquietou.

Poderia ter acontecido, mas não aconteceu.
Poderia ter acontecido, mas não aconteceu.

Começamos a conversar sobre como duas ou mais pessoas podem olhar o mesmo fato e serem capazes de chegar a narrativas diferentes. Ao final, concluí que o importante não é o que se conta, mas o jeito que se conta algo.

Podia ver, nas demais janelas e sacadas da rua, mais gente acompanhando a mesma cena que testemunhei. No entanto, somente eu descreveria da forma que fiz. Outro homem ou mulher tentaria um tipo alternativo de abordagem, talvez alguém se solidarizasse com as vítimas, outro atacasse os policiais, e ainda existiriam aqueles capazes de chegar a conclusões sociológicas sobre a mesma sucessão de fatos. Não sei. Muitas visões, muitas possibilidades. Eu, por minha vez, só conseguia ver literatura se contorcendo por toda a cena como se fossem serpentes, todas evocando livros. Mencionei “A carta roubada”, do Edgar Alan Poe, mas poderia ter mencionado outras histórias que me acudiram no momento, como “Arsène Lupin”, do Maurice Leblanc, “Recordações da casa dos mortos”, de Dostoiévski, a cena das sereias da “Odisseia”, de Homero, ou a briga no convés de “Lorde Jim”, do Conrad.

Existem muitas formas de contar a mesma história, e cabe ao autor escolher a mais adequada. Na descrição que fiz, o primeiro parágrafo contém um breve sumário de toda a cena, do início ao fim, e uma pessoa mais pragmática pode se satisfazer com a realidade fria dos fatos. Em seguida, eu próprio afirmei que ia fazer algumas considerações. Neste momento, saí da objetividade formal e passei àquilo que o meu subjetivo observou dentro da mesma sequência imutável de fatos. Os detalhes que concederam vivacidade à cena.

Claro que descrevi a cena no calor do momento, sem atentar muito para a correção gramatical ou lexical, sem sequer observar o estilo, e toda esta análise que acabei de fazer aconteceu em segundos, quando ainda estava redigindo, no mais absoluto impulso. Quando se aprende a escrever com o objetivo de transmitir uma narrativa, o pensamento é mais rápido do que as palavras ou do que o estilo; o resto do texto é revisão e correção.

Escrever é fazer escolhas. Qualquer um pode escrever como Shakespeare ou como a Barbara Cartland, tudo é questão de saber o jeito que deseja contar a história.

O que me faz lembrar de Tchekhov. No dia 23 de fevereiro de 1892, do alto dos seus recém-completos 32 anos, ele escreveu uma carta para o seu amigo escritor V. A. Tihonov com este teor (tradução minha do inglês para o português):

“Você está enganado em imaginar que estava bêbado na festa realizada para o aniversário de Shcheglov. Você teve uma queda, isso foi tudo. Você dançou quando todos eles dançaram, e o seu jigitivka na carruagem nada animada do cocheiro causou deleite geral. Quanto à sua crítica, era mais provável  estar longe de ser grave, posto que não lembro mais dela. Só lembro que Vvedensky e eu, por algum motivo, caímos na gargalhada enquanto o escutávamos.
Você quer a minha biografia? Aqui está.
Eu nasci em Taganrog em 1860. Terminei o ensino médio em Taganrog em 1879. Em 1884, eu consegui a minha licenciatura em medicina pela Universidade de Moscou. Em 1888, ganhei o prêmio Pushkin. Em 1890, fiz uma viagem para Sahalin através da Sibéria, e voltei pelo mar. Em 1891, eu fiz uma turnê na Europa, onde bebi excelente vinho e comi ostras. Em 1892, tomei parte em uma orgia na companhia de V. A. Tihonov em uma festa de aniversário. Comecei a escrever em 1879. As coleções publicadas das minhas obras são: ‘Contos heterogêneos’, ‘À meia noite’, ‘Histórias’, ‘Pessoas Rudes’, e um romance, ‘O Duelo’. Pequei na linha dramática também, embora com moderação. Eu fui traduzido em todas as línguas, com exceção das estrangeiras, embora eu tenha de fato sido, desde há muito atrás, traduzido pelos alemães. Os checos e os sérvios parecem aprovar-me também, e os franceses não são indiferentes a mim. Tenho sondado os mistérios do amor desde meus treze anos. Com os meus colegas, tanto os médicos quanto homens de letras, eu estou no melhor dos termos. Sou um bacharel. Gostaria de receber uma pensão. Pratico medicina, e tanto assim que, por vezes, no verão eu executo autópsias, embora não tenha feito isso por dois ou três anos. Dos autores, o meu favorito é Tolstoi, e, entre os médicos, Zaharin.
Contudo, tudo isto é nonsense. Escreva a biografia que quiser. Se não tiver fatos, use o lirismo.”

Imagino que Tihonov tenha pedido uma biografia de Tchekhov para apresentar em algum lugar, e essa foi a resposta do escritor russo.

Anton Tchekhov jovem
Anton Tchekhov jovem

Na carta, Tchekhov faz uma autobiografia deliciosa. Consegue misturar fatos inquestionáveis (o nascimento, a formatura em medicina, as viagens) com pequenos detalhes que fazem extrema diferença, como a referência às ostras e a à participação em uma orgia. Faz um jogo de linguagem engraçado com as suas traduções e, ao mesmo tempo, apresenta frases de uma ironia devastadora, como Pequei na linha dramática também, embora com moderação e Gostaria de receber uma pensão. Fora da ordem cronológica, insere uma frase aparentemente fora do contexto, Tenho sondado os mistérios do amor desde meus treze anos”, e ainda diz quem é o seu escritor e seu médico favoritos.

Ao final, a grande lição do escritor russo: tudo é nonsense. A vida própria que levamos é nonsense. As pessoas podem fazer a biografia que quiserem sobre nós, podem ter a imagem que bem desejarem a nosso respeito. Podem imaginar que somos herois ou vilões nas histórias delas. Contudo, no final do dia, a única coisa que importa é como usamos o lirismo para contar as nossas vidas chatas e rotineiras. Assim como algumas pessoas podem ver um fato social em um ônibus quase assaltado, existem aquelas que conseguem ver os mesmos eventos como uma sucessão de planos mal executados ou de uma genialidade impressionante diante das circunstâncias.

Quem tiver o melhor lirismo, fará a sua versão triunfar. Não por ser a mais realista, mas por ser a mais verossímil.

altamira

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