No texto que escrevi para o Medium da Dublinense da semana passada, tratei do poder quase letal das leituras efetuadas em conjunto. Andei relendo trechos da “Odisseia” de Homero e da “Divina Comédia” de Dante por causa de alguns eventos em que falei nos últimos tempos, e impressionei-me com a história de Paolo e Francesca, e de como o primeiro beijo deles foi trocado no meio da leitura da história de Lancelot e Guinevere. Tão completa foi a identificação da vida real com a ficção que o amor se tornou inevitável, transformando a leitura em conjunto como o motivo maior da sua desgraça.

Não conheço pessoas que leem em conjunto, mas deve ser uma experiência interessante dividir o mesmo livro com outro par de olhos, e deixar os sentimentos da ficção se transportarem livremente para a realidade. Partindo deste pressuposto, escrevi sobre a importância da leitura como forma de criar e solidificar relações.

Boa leitura!

 

A leitura como experiência lasciva

É incrível pensar que a leitura em silêncio foi criada por um homem. Melhor dizendo, por um santo.

Foi Santo Agostinho em “Confissões” que, descrevendo a rotina de Santo Ambrósio (responsável pela sua conversão), mencionou que ele “refazia o corpo com o alimento necessário, ou o espírito com a leitura. Mas, quando lia, os olhos divagavam pelas páginas e o coração penetrava-lhes o sentido, enquanto a voz e a língua descansavam.” Em seguida, Santo Agostinho diz que sentava na frente do silencioso leitor e passava um longo tempo contemplando-o, antes de ir embora. Na pergunta “quem é que ousaria interrompê-lo no seu trabalho tão aplicado?”, existe todo um despeito e inveja, ainda mais se considerarmos que, logo a seguir, Agostinho insinua que a leitura em silêncio impedia o debate de temas e dúvidas com outros discípulos, prejudicando o entendimento do livro. Muito ciúme dentro de um só homem. No final, ele redime Santo Ambrósio com uma declaração que impressiona pela sua fragilidade argumentativa (sem contar que parece mais a opinião cega de um fã): “Mas, fosse qual fosse a intenção com que o fazia [a leitura em silêncio], só podia ser boa, pois era feita por tal homem.”

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No passado, era costume que as pessoas lessem em voz alta, transformando a leitura em uma experiência coletiva. Quando alguém lia para os outros, mais do que entregar palavras, estava permitindo que eles se deleitassem com a história e participassem do mesmo ato de comunhão literária. Não deixa de ser interessante que uma das definições mais conhecidas de leitura a situa como um ato individual. É uma construção mais atual do que imaginamos; no seu início, a leitura era um ato de divisão entre iguais, da mesma forma que se dividia um pão na mesa.

Nem paramos para pensar no quanto a individualidade se espalha pelo mundo, insidiosa e constante. Pensar na nossa satisfação nos impede de pensar nos outros. Por exemplo, é muito difícil enxergarmos um casal lendo o mesmo livro: são tempos de leitura diferentes, ritmos antagônicos, vontades díspares. Um quer acelerar, o outro pode ir mais devagar. As conversas sobre livros demandam duas almas cordatas em busca de crescimento pessoal, algo não tão fácil de achar, pois precisaríamos procurar uma pessoa que não só gosta de ler, como alguém que tenha lido o mesmo livro e, não bastando, esteja disposta a conversar sobre ele. Admito que um dos meus pecadilhos é presentear pessoas cujas opiniões respeito com livros que já li, tentando, assim, criar ambiente para um diálogo futuro.

É possível que exista perigo em um casal ler o mesmo livro de forma simultânea. Em “A Divina Comédia”, quando estava passando pelo segundo círculo do Inferno, onde ficam os lascivos, Dante encontra um casal, Francesca e Paolo. Como de costume na obra do escritor florentino, existe uma base na realidade. Francesca da Rimini era uma bela mulher que, com o propósito de acabar com uma guerra entre duas famílias de Ravena, foi entregue em casamento para o filho mais velho da família adversária. Ela se apaixonou pelo cunhado, com quem estabeleceu um relacionamento adúltero por 10 anos, até que o marido traído descobriu e matou o casal.

Paolo e Francesca, por Dante Gabriel Rossetti
Paolo e Francesca, por Dante Gabriel Rossetti

 

Ao colocar o casal no final do Canto V, Dante Alighieri conta a história de como o amor deles surgiu: Francesca diz que estava lendo um livro quando Paolo se adiantou e começou a ler em conjunto com ela. O livro era “Lancelot em prosa”, dividido em cinco volumes, e, quando ela menciona que “Galeotto foi o livro e quem o escreveu”, podemos situar como o segundo volume, que narra os primeiros momentos do amor de Lancelot por Guinevere, esposa do rei Arthur. A descrição de Francesca do que é narrado dentro do livro e, ao mesmo tempo, do que está acontecendo fora dele, faz com que as fronteiras da leitura e da vida real vão caindo uma a uma, até que o casal se confunde tanto com a outra dupla presente na ficção que acaba se beijando.

É uma descrição lasciva, como não podia deixar de ser. É possível sentir os corpos frementes quase colados no ato da leitura em conjunto, enquanto Lancelot desiste dos seus preceitos de honra e toca os lábios de Guinevere ao mesmo tempo em que Francesca sente Paolo se abandonar aos seus. Dante, que não dá ponto sem nó, coloca dentro da ficção uma história real que foi influenciada por outra ficção, e eis o auge da genialidade: ao contar o surgimento do amor por causa de outra história de amor, o escritor coloca em evidência a ideia de que o amor pode ser insuflado por outras formas de amor, inclusive através de livros.

Francesca deixa entrever, na sua narrativa, que o amor por Paolo surgiu graças à descrição do amor sentido por Guinevere e Lancelot, um sentimento igualmente proibido. A própria menção a “Galeotto” passa a ideia de um ato inimigo, pois este era um dos nomes do inimigo do rei Arthur: ao dizer que “Galeotto foi o livro e quem o escreveu”, a mulher declara que o livro tanto foi inimigo do rei Arthur – por descrever e atestar a infidelidade conjugal da rainha – quanto o seu autor, por insuflar pensamentos libidinosos em outros leitores. Toda a descrição de Francesca é no sentido de que o livro é o culpado pelas suas desventuras e que, se não existisse tal exemplar, provavelmente o amor não teria surgido.

No entanto, também se pode ler este trecho de “A Divina Comédia” como o potencial perigo de uma leitura em conjunto. Partilhar de um livro é ter os olhos concentrados no mesmo espaço físico. Estar lendo ao lado de alguém faz com que nos sintamos próximos a esta pessoa e, dependendo da qualidade da leitura, não seria surpreendente se os corações batessem no mesmo ritmo ou se as bocas secassem ao passar pelas mesmas palavras. A ficção faz desmoronar os limites da realidade e, ao ler a história de um casal, foi impossível para Francesca e Paolo não assumirem os papéis que eles representavam, cedendo ao amor de tal forma que leitura e vida real acabaram se confundindo.

É possível que não leiamos livros em conjunto por um medo quase atávico, primitivo, do que pode acontecer quando duas imaginações se concentram no mesmo ponto. Apesar de Santo Agostinho elogiar – com a necessária dose de despeito – a leitura em silêncio feita por Santo Ambrósio, ao lermos um texto em voz alta, com a constante intromissão de perguntas, risadas e outros sons humanos, conseguimos manter distância da absoluta entrega para a ficção. É improvável que Francesca e Paolo tivessem se beijado se a história fosse lida em voz alta. A tensão da cena concentra-se na leitura em silêncio, na ficção pulando o fosso da realidade e escalando os muros para invadi-la, nos corpos que se ajustam ao drama presente nas páginas até então quietas. A literatura pode estar na origem de muitas coisas, desde uma guerra até um beijo, ainda mais se considerarmos que uma das definições mais diretas do amor é “o encontro de duas solidões”. E existe solidão maior do que a proporcionada pela leitura?

A escultura O beijo, de Rodin, originalmente se chamava Francesca da Rimini
A escultura “O beijo”, de Rodin, originalmente se chamava “Francesca da Rimini”

Comentando este trecho de “A Divina Comédia”, Alberto Manguel diz que “Paolo e Francesca não eram leitores ideais, pois confessaram a Dante que depois de seu primeiro beijo pararam de ler. Leitores ideais teriam se beijado e continuariam lendo. Um amor não exclui o outro.” No instante em que o casal trocou um beijo, a leitura tornou-se dispensável. A literatura virou um detalhe. Ouso em dizer que não era mais Francesca e Paolo que estavam ali, mas Guinevere e Lancelot. Dante não deixa claro se a leitura em conjunto foi algo positivo ou não, pois liberou as represas sentimentais que separavam os apaixonados, mas a punição que aflige o casal é exemplar: um vendaval os aproxima e os afasta por toda a Eternidade. Eles estão sob constante ataque do vento. Foi a forma encontrada pelo escritor florentino para censurar os que são conduzidos pelo vendaval das próprias emoções, mas também serve como representação para a leitura e a sua capacidade de nos levar de roldão para dentro de mundos ficcionais, fazendo-nos esquecer de quem somos ou onde estamos para nos absorver em dramas alheios.

Ao final do Canto V do Inferno, um grande mistério: assim que Francesca da Rimini termina a história (Paolo passa o tempo todo chorando ao seu lado), assaltado pela piedade, Dante Alighieri desmaia, “e tombei, como tomba corpo morto”. No meio dos horrores que presenciará no Inferno, é um dos poucos momentos em que o narrador fraqueja, e é graças à piedade. Uma das possíveis explicações para este trecho diz que, da mesma forma que Paolo e Francesca se entregaram ao amor após a leitura de uma história, logo após escutá-la, Dante foi tomado por tamanha identificação com o drama narrado que acabou desmaiando. É uma meta-referência interessante, pois mostra a força quase física da literatura dentro de uma obra literária. Também existe um claro nivelamento da história escrita com a oral: tanto de uma maneira quanto de outra, o drama continua passando do mesmo jeito para o leitor/ouvinte, algo que, de certa forma, tranquiliza Santo Agostinho.

É impossível não pensar o quanto consideramos a leitura como algo mágico até os dias atuais. Quando Santo Ambrósio começou a ler em silêncio, ocultando as suas reflexões e chamando a atenção de Santo Agostinho, e quando Francesca e Paolo se entregaram ao amor desvairado por causa da comunhão conjunta de um livro que mimetizava (ou criava) seus sentimentos, eles estavam mostrando o quanto a leitura pode ser tanto fonte de poder quanto de desconforto.

Pessoas que lêem são imprevisíveis. Possuem vidas inesperadas. São lascivas, pois se misturam com outras almas ficcionais e conseguem induzir sentimentos em inocentes. Sabem conversar sobre muitos assuntos diferentes, e não conseguem distinguir o acontecido do imaginado. Leituras em silêncio são subversivas, pois cultivar o silêncio em uma sociedade gritante é revolucionário. Colocar um livro próximo a um casal é como deixar uma espingarda dentro da sala, sabendo que, um dia, ela vai disparar. A experiência humana é uma tentativa perene de segregar a leitura alheia, o que nos leva a concluir que, talvez, as pessoas não leiam mais por ignorância ou preguiça.

Talvez elas tenham medo do que pode acontecer.

(Publicado originalmente em https://medium.com/colecao-dublinense/a-leitura-como-experi%C3%AAncia-lasciva-9a7ffe9633de

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