Ontem, 03 de agosto, lembramos 91 anos da morte de Joseph Conrad e, por este motivo, fui dar uma folheada nos livros dele.

Recordei o meu fascínio quando li “O coração das trevas” pela primeira vez, contando a chegada de Marlow ao rio Congo, com a missão de trazer Kurtz de volta à civilização. Apesar de respeitar “Apocalypse Now”, do Coppola, penso que o livro é superior em muitos aspectos ao filme, em especial na ideia de que, como diria Aristóteles, um homem solitário ou vira um animal ou vira Deus e, no final, existe pouca diferença entre ambos.

Gosto muito de um trecho de “O coração das trevas”, quando Marlow encara Kurtz pela primeira vez e percebe, com certo pavor, que não existe mais um homem ali, mas uma alma tão distorcida que virou a mais ampla das insanidades, um parafuso que girou tanto no próprio eixo que perdeu a própria essência:

“Mas sua alma havia enlouquecido. Estava sozinha na selva, havia olhado para dentro de si e, por Deus, não tenho dúvida de que enlouquecera. Nenhuma eloquência poderia ter sido tão devastadora à nossa crença na humanidade como sua explosão final de sinceridade. Lutava contra ele próprio também. Presenciei isso tudo, vendo-o… ouvindo-o. Vi o mistério inconcebível de uma alma que não conhecia limite, nem fé, nem medo, embora lutasse cegamente contra si própria.”

 

Todos temos um Kurtz esperando no nosso local mais secreto, no centro do templo inominado que forma cada alma humana. É uma criatura descontrolada que, no fundo, tememos encontrar, pois ela nos parece o único ser lógico em um mundo despedaçado. Uma presença ancestral, sábia, cujo conhecimento remonta aos primórdios da raça humana e fala, com a sua língua bífida, a voz dos medos primitivos.

Evitamos falar ou pensar nisto, mas todos conseguem entender a ideia de que existe alguém que mora na nossa sombra – alguém que não gostaríamos de encontrar. Toda a existência dos homens é uma tentativa de fugir do encontro com esta criatura.

Encontrar o Kurtz que mora dentro de cada um de nós e fazê-lo aflorar é muito mais interessante do que passar a vida esperando Godot, que a ressaca dos olhos de Capitu enfim dissipe ou mesmo saber – como Hamlet – se somos ou não somos, mas daí é uma questão de visão de mundo – e de prioridades.

(Observem que não citei Moby Dick. Para mim, as pessoas passam a vida em um movimento pendular: para dentro, procuram o Kurtz que dá energias para a sua alma, buscam o auto-conhecimento; para fora, estão caçando a morte, essa baleia branca, desde que o primeiro ar entrou nos pulmões, em uma luta insensata na qual a vitória é impossível. Kurtz e Moby Dick – eis os dois polos por onde a experiência humana transita).

No entanto, meu livro favorito do Conrad é o “Lord Jim”. Toda a pessoa já esteve no mesmo dilema: salvar-se de forma indigna de um perigo ou “morrer” com honra. É um dos grandes temas da Literatura – Heitor na “Ilíada” de Homero, I-Juca Pirama, do Gonçalves Dias, o Dahlmann de “O sul”, do Borges. Viver desonrado ou correr o risco de morrer com honra, é uma dúvida que só saberemos responder quando chegar a hora – que é impiedosa. A decisão precisa ser tomada em milésimos de segundos e, depois de tomada, teremos uma vida inteira para conviver com ela. Só sabemos se somos o herói ou o covarde depois que o momento passou. Eu sou capaz de lembrar alguns momentos da minha vida em que estive diante de tal dilema, e posso afirmar, com humildade, que ainda não sei o que sou.

Relendo trechos de Conrad, notei algo: ele devia ser um grande contador de histórias. Daqueles que dizia “pega uma bebida e senta aí que vou contar!”, entregando-se à volúpia de narrar uma longa e tortuosa trama, repleta de detalhes. E é disto que a literatura – e a vida – é feita, no final do dia: de HISTÓRIAS. Estamos sempre criando, vivendo ou contando histórias, e alguns poucos, como Conrad, são mestres nesta arte de nos envolver em outros mundos, deixando-nos mais próximos das questões que tanto tememos.

Joseph Conrad
Joseph Conrad

2 comentários em “Em busca da alma: impressões rápidas sobre Joseph Conrad

  1. Poxa, obrigado pela reflexão sobre Conrad! Eu li apenas “O Duelo” – que recomendo fortemente – e agora quero visitar “O coração das trevas”. Espero por mais boas impressões de leitura!

    1. Grande lembrança! Esqueci de mencionar “O Duelo”, que é um livro maravilhoso – e deu origem ao filme “Os Duelistas”. Um livro que trata da honra masculina, e de como ela deve ficar além de quaisquer outras questões. Agora recordei de “O Duelo”, otra grande história do Conrad. Valeu pela leitura e pelo comentário. 🙂

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