Quando anunciei que viajaria para o Uruguai neste mês, algumas pessoas aproveitaram tal fato para realizar seus pedidos. Ontem à noite, para não esquecê-los, resolvi fazer uma lista, e foi assim que ela ficou:

Uma caixa de fósforos de um determinado hotel (ainda fazem caixas de fósforos?);

um presente que tenha a cara e o espírito de uma determinada pessoa;

um cinzeiro;

alguns livros específicos, outros nem tanto;

um barco dentro de uma garrafa;

um botão de camisa usado;

pediram que eu me divirta (várias pessoas);

pediram que eu volte (só meus pais);

um amigo pediu fotos de mulheres uruguaias desnudas (presumo que sejam fotos de revistas. As mulheres de um país são diferentes das mulheres de outros? Isto nunca tinha passado pela minha cabeça);

pediram fotos;

pediram histórias;

pediram que eu abra os olhos e veja ao redor;

 

alfajores de chocolate e morango;

pediram que eu RESPIRE.

Listas são divertidas. Desde os Dez Mandamentos, elas são algo que servem mais como referência do que como guia. Conheço pessoas tão fascinadas por organização que fazem listas de listas; não à toa, são as mais desorganizadas. No entanto, a nossa relação é complicada: normalmente, quando faço listas, acabo as esquecendo. Muitas vezes iniciei listas de supermercado com o vocativo “Não esquecer a lista de supermercado!”, mas foi inútil. É melhor confiar na minha memória.

escape reality

O Umberto Eco tem um livro muito interessante, “A Vertigem das Listas”, em que leva o conceito um pouco além, procurando exemplos na pintura, na escultura e na literatura feitas sem o formato de listas, formas encontradas de passar quantidade e enumeração sem que estejam com esta ideia claramente declarada. Após a leitura, concluí que, se existe algo completamente humano, é a tendência de capturar o infinito através da listagem de elementos que guardam semelhança entre si ou identidade de objetivos.

Mas as listas desconexas são as mais desconcertantes. Jorge Luis Borges usa várias vezes este recurso. Apesar da tentação, não vou me deter na lista de Borges que Michel Foucault mencionou como responsável pela gênese de “As Palavras e as Coisas” (para contextualizar, menciono a introdução de Foucault: “Esse texto [de Borges] cita ‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde será escrito que ‘os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas’.”).

As conclusões a que Foucault chegou com base neste trecho sempre me deixaram um pouco decepcionado. Ao contrário do que ele defende, não acho esta lista impossível ou de caráter arbitrário; eu a considero uma caixa de possibilidades que abarca outras caixas e , assim, até o infinito. O cerne da questão – para mim, desculpe-me, Foucault – está em “uma certa enciclopédia chinesa em que será escrito”: o papel aceita tudo e torna tudo possível, até o impossível. Considero a listagem como um cubo mágico diabolicamente planejado – ou, que seja, suspiro de desalento, um LABIRINTO – para levar o leitor até a loucura na tentativa de resolver seus mistérios, mas não acho uma lista impossível. Ou alguém aí acha que eu não respirei até hoje e que tal item precisa ser colocado numa lista para que eu me lembre?

Prefiro outras listas menos pretensiosas de Borges, em especial as que aparecem em “O livro dos seres imaginários”, escrito em parceria com Margarita Guerrero. Na introdução, eles anunciam o intento do livro:

“O nome deste livro justificaria a inclusão do príncipe Hamlet, do ponto, da linha, da superfície, do hipercubo, de todas as palavras genéricas e, talvez, de cada um de nós e da divindade. Em suma, quase do universo. Ativemo-nos, contudo, ao que imediatamente sugere a locução “seres imaginários”, compilamos um manual dos estranhos entes que engendrou, ao longo do tempo e do espaço, a fantasia dos homens.”

Duas palavras constituem o cerne desta lista, e as duas mostram indefinição: “talvez” e “quase”. “Talvez” coloca a própria figura do leitor no papel de uma criatura imaginária, o que é desconfortável, mas, se pensarmos que nem todo livro nasce para ser lido e que o Leitor também é uma construção do autor, eu entendo que não existe outra possibilidade do que não imaginar que todo leitor é uma criatura imaginária. Até mesmo vocês, pessoal.

Todas as pessoas são imaginárias, tanto pelos outros quanto por si própria… ou alguém realmente acha que é real? A esta altura da vida? Desculpem, mas é muita ingenuidade; não passamos de projeções alheias e de idealizações reprimidas. Eu sei que não sou real, e aceitar a minha irrealidade é um conforto.

Por outro lado, o “quase do universo” deixa uma questão no ar: o que está além de todo o Universo e fora da abrangência da realidade? Por que a única opção de não ser imaginário está fora do universo inteiro? Acho que a resposta escapa da minha compreensão ainda que, instintivamente, eu entenda que o real só possa existir fora da irrealidade em que vivemos.

mascarado fumando

Outra listagem que gosto bastante deste mesmo livro:

“Em um bosque, o protagonista se depara com uma estátua de pedra, que lhe parece o ídolo de algum velho templo germânico. Toca-a e a estátua lhe diz que é Baldanders e assume as formas de um homem, de um carvalho, de uma porca, de um salsichão, de um prado coberto de trevo, de esterco, de uma flor, de um ramo florido, de uma amoreira, de uma tapeçaria de seda, de muitas outras coisas e seres, e então, novamente, de um homem.”

O engraçado é que o mais indefinido dos itens desta lista é justamente um homem. Sem contar que a inclusão de um salsichão como uma das formas escolhidas é o elemento que quebra a linearidade. E aqui está o ponto que eu pensei quando vi a lista que me deram de coisas para fazer/trazer do Uruguai: não existe linearidade alguma. Nenhuma espécie de lógica. São elementos que, separados, possuem sentido próprio, mas, juntos, não possuem nenhum nexo.  

E isto me faz pensar em quantas coisas na minha vida, quando olhadas em separado, possuem toda a coerência possível, mas, unidas, mostram um ser despedaçado, multifacetado – e repleto de instabilidades e incertezas. Como talvez todos nós. Como quase o universo.

Da lista que fiz, uma coisa é certa: a diversão. Este é o meu grande segredo – estou sempre me divertindo comigo, mas isto não quer dizer que eu esteja rindo.

4 comentários em “Sobre listas improváveis

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