Acontece com quem lê vários livros diferentes ao mesmo tempo. Logo o assunto de uma obra reverbera nas páginas da outra, o tema preferido de uma personagem encontra eco nos anseios da sua antípoda que caminha em distintas páginas, as perguntas de um narrador acabam sendo respondidas pelo seu irmão desconhecido que transita por outro livro.

Nas minhas últimas leituras, chamou-me atenção o aparecimento de pessoas que convivem com pássaros no seu interior.

Eu sei que é uma alegoria: acho difícil que abra a minha boca e uma caturrita escape por entre os lábios (difícil, mas não impossível). Os pássaros representam o último estatuto da liberdade. Voar é libertar-se da gravidade e do mundo.

Imaginar que existem pássaros dentro de cada um é o mesmo que dizer que somos criaturas repletas de sonhos que, libertados, podem alcançar píncaros ainda desconhecidos. Frida Kahlo, no “Diário”, indagou “pés, para que os quero, se tenho asas para voar?”. Conhecendo a sua sofrida trajetória de vida, é gratificante ver que ela dispensava a presença dos pés enquanto pudesse criar e voar com a sua imaginação, livre das amarras físicas.

No conto que dá título ao livro de contos de Samanta Schweblin, “Pássaros na boca”, a personagem principal tem a estranha característica de só se alimentar de pássaros vivos. O horror do seu desejo torna-se ainda mais flagrante quando ela somente gosta de ingeri-los vivos, como se a liberdade alheia e a capacidade de voar sem controle fosse o verdadeiro objeto da sua fome.

Dirão os vegetarianos que existe pouca diferença entre comer pássaros mortos e pássaros vivos, o essencial é a vida que se vai, mas, ainda assim, a ideia de uma vida ser destroçada por implacáveis dentes e ter o seu sangue quente sorvido no mesmo ato é a inversão do conceito poético de que pássaros podem morar no peito humano. No caso, os pássaros são assimilados e destruídos pelo corpo ou, mantendo este idílio criado por mentes sensíveis, os pássaros que moram dentro da personagem exigem um tributo na forma de seus congêneres ainda livres. Pássaros da alma devorando pássaros soltos; canibalismo levado às últimas consequências.

Por isto, Neruda, que leva os pássaros para dentro da mulher amada, identificando-a também com a liberdade das ondas e do vento:

“Para meu coração basta o teu peito
para que sejas livre as minhas asas.
De minha boca chegará até o céu
o que dormido estava em tua alma.

Tu trazes a ilusão de cada dia.
Chegas como orvalho nas corolas.
Com tua ausência escavas o horizonte.
Eternamente em fuga, irmã das ondas.

Já disse que o teu canto era o do vento
como cantam os mastros e os pinheiros.
És como eles alta e taciturna.
Entristeces de pronto, como uma viagem.

Acolhedora como a antiga senda.
Abrigas ecos e vozes nostálgicas.
Desperto e alguma vez emigram, fogem
pássaros dormindos em tua alma.

“Veinte poemas de amor y una canción desesperada” (na tradução de Thiago de Mello)

 

"Freedom comes from the inside", por ammozart.
“Freedom comes from the inside”, por ammozart.

Contudo, percebi que, em algumas pessoas, também moram pássaros sombrios. São corvos que, enquanto crocitam seus horrores, devoram a carne que os cerca. Alejandra Pizarnik disse “não sei sobre pássaros, não conheço a história do fogo. Mas creio que a minha solidão deveria ter asas”. A possibilidade de desalojar sentimentos, incômodos pássaros que desaprenderam, a voar também é uma possibilidade perturbadora. Todos podem se libertar das suas aflições se abrir a gaiola dos sentimentos e deixá-los sair. Neste caso, por que não conseguimos fazer isto? Por que mantê-los?

De todos os pássaros negros abancados no interior dos corpos, acredito que Fernando Pessoa, ao colocar grandes pássaros que espreitam o limiar do seu ser, tocou no terror silencioso que pode morar dentro de cada um:

Grandes mistérios habitam

O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

No meu percurso de leituras, chamou atenção os pássaros que adejavam sobre diferentes escritores, sempre objeto de fascínio. Não sei o motivo da coincidência que me levou a notar este detalhe. Também existe a possibilidade do meu inconsciente ter procurado leituras que remetessem a pássaros, e esta é uma questão pessoal inquietante.

Eu possuo corvos, abutres e urubus no meu espírito, mas eles ficam nas partes mais obscuras, alimentando-se das liberdades que vou aos poucos matando.

"Transfiguration", Sócrates Magno Torres
“Transfiguration”, Sócrates Magno Torres

3 comentários em “Os pássaros que moram em nós

  1. Eu terminei de ler Máquina de fazer espanhóis do valter hugo mãe (como ele não usa maiúsculas não as usei também eu) e há corvos que povoam os delírios de antónio, o personagem principal, um senhor que perdeu a mulher e que espera a morte em um asilo. Os corvos são seguramente a morte que ele quer, mas também teme. São assim os pássaros também vida e morte.

    1. Oi, Alexandra, este livro eu ainda não li, mas está na minha lista de leituras futuras. Legal saber que os pássaros se disseminam pela literatura como símbolo tanto de algo positivo quanto negativo. Não é somente o meu olhar que está contaminado por esta obsessão. Um abraço, e obrigado pela leitura

  2. Parabéns pelo texto! Confesso que não lembro de ter lido algum livro que tenha pássaros na trama, ou até mesmo nas entrelinhas. Apenas me recordo do filme do Hitchcock.

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