Na minha opinião, um dos gêneros literários mais ingratos é a crônica. Por estar vinculada ao cotidiano e à velocidade das paixões e fúrias humanas, é um gênero que se presta ao consumo rápido, quase impensado, de leitores com pressa dispostos a colher a opinião ou ponto de vista de outra pessoa. A crônica ruim envelhece em questão de horas e se torna ultrapassada; no entanto, a crônica boa persiste na memória do leitor por mais tempo e, em alguns casos, pode acabar se tornando tão inesquecível quanto um romance de formação. Enganam-se aqueles que pensam que, pela sua aparente rapidez, a crônica seja fácil de escrever.  Talvez seja o único gênero em que a apreciação do seu conteúdo determina, na primeira e fatídica leitura, o sucesso ou insucesso da escritura. Não invejo os cronistas, pois esta vida de pinçar fatos do cotidano e se posicionar sobre eles é realmente muito intensa.

A primeira vez em que li “O Sexo das Antas”, da Kelli Pedroso, foi logo após o seu lançamento. Passada a curiosidade inicial, deixei esfriar as sensações desta primeira leitura e, agora, quase oito meses depois, retornei ao livro. Foi um retorno prazeroso.

A maioria das crônicas foi publicada no jornal Expresso Minuano, do Alegrete. Justamente por tal fato, muitas delas encontram-se imbrincadas com a realidade da época ou com notícias que estavam sendo veiculadas no momento da sua produção. Em alguns casos, talvez pela minha memória já falha, senti falta da notícia que deu origem à crônica, pois acreditei que a minha leitura e compreensão teriam ganhado novas chaves de interpretação. No entanto, até esta falta tem charme, pois crônicas feitas com base em notícias desconhecidas alcançam um estranho caráter de irrealidade à fatos ocorridos. Em especial no Brasil, país do impossível real, onde até a ficção tem pruridos quando confrontada com a realidade. Torna-se inacreditável que determinados fatos tenham acontecido ou, pior, nada de muito grave tenha decorrido de tais eventos. Contudo, se a crônica existe, os fatos existiram também (ou, pelo menos, eu assim acredito). Na crônica “Disseminação do mal”, a autora fala das pichações que foram feitas na Igreja do Rosário, em Porto Alegre. Esta notícia é o ponto de partida para a reflexão de como o mal se encontra espalhado pelo mundo nas mais diversas formas, encerrando com um desabafo, o desejo (impossível) de acabar com a maldade. A derradeira frase, contudo, descontrói a crônica, pois a autora admite a sua impotência, dizendo que, mesmo assim (ou apesar disso), continua imune ao mal que grassa pelo planeta, deixando no ar a incômoda pergunta que todos já se fizeram ao ler notícias de atrocidades ou desgraças: quando elas vão bater na minha porta?

As crônicas que mais gostei foram aquelas que se afastaram dos problemas do cotidiano e ingressaram no lirismo das situações. E a Kelli Pedroso tem muito lirismo na forma com que enxerga o mundo. Algumas das suas crônicas revelam emoções genuínas, que todos os leitores já compartilharam em algum momento, mas que possuem dificuldades para colocar no papel. Sem medo de soar piegas (e, o mais incrível, sem soar piegas, mesmo com a exploração de assuntos já tão repisados na ficção, como a morte, o desamparo, a solidão, a infância), a autora compartilha a sua vivência e sua forma de ver o mundo com o leitor. Algumas crônicas escapam do seu limite teórico e resvalam na área do conto, como, por exemplo, “Guriazinha”, onde a narradora conta uma experiência de forma tão vívida que o espaço entre sonho e realidade se torna quase indistinto. Da mesma forma, “Bananas” parte de um episódio vivenciado pela narradora – a sua predileção por bananas – e sobe de forma intensa, até um final misterioso, misto de comédia e seriedade, quando afirma ter pego o cipó para ir embora.

Um dos aspectos mais positivos do livro – e algo que está faltando na crônica moderna – é que Kelli Pedroso não desanda para a tentação do humor fácil. Nos últimos anos, toda e qualquer pessoa que se identifica como cronista pretende imitar o estilo “engraçadinho” de outros cronistas, fazendo troça com assuntos sérios ou se limitando a buscar associações fáceis de ideias. Alguém certa vez comentou que é mais difícil fazer rir do que chorar, mas, em um universo repleto de escritores metidos a atores de stand-up comedy, a reflexão e o pensamento sério, com doses de tragédia, se torna avis rara. Faz muita falta uma crônica séria e responsável, que estimule a reflexão ao invés do riso. Eu não sabia que sentia tanta falta das crônicas de um Rubem Braga ou do Fernando Sabino (do passado) até ler “O Sexo das Antas”. É evidente que, por ser jovem e ainda estar no seu livro de estreia, Kelli Pedroso tem um longo caminho a trilhar, e comparações com Rubem Braga ou Fernando Sabino só viriam a prejudicá-la na busca da voz própria. No entanto, sabendo a sua proposta desde agora, é algo interessante para ver o desenvolvimento, ainda mais em um mundo que parece cada vez mais dissociado da reflexão.

A escolha por assuntos mais sóbrios não significa dizer que o livro não possui crônicas engraçadas. Em “Presente de madrinha”, a autora descreve o presente que recebeu – um abrigo completamente amarelo – e o dia em que foi obrigada a usá-lo; as suas sensações são impagáveis, tais como se sentir como um pinto depenado, por ter cortado o cabelo alguns dias antes deste passeio. Quem nunca recebeu o presente desconfortável de um familiar querido e foi obrigado a utilizá-lo?

As crônicas são rápidas, a maioria delas não passa de duas páginas. Ao final do livro, estamos diante de uma autora que soube se posicionar, que soube conversar sobre diferentes assuntos e que não teve medo do politicamente correto ou do socialmente admissível para expor a sua opinião. É impossível escapar impune ou indiferente, pois, diante do leque de assuntos abordados, pelo menos em alguns deles a opinião da autora ou foi contrária ou foi favorável a do leitor. Claro que a Kelli Pedroso ainda tem uma longa jornada pela frente, é evidente que muito ainda precisa ser burilado no seu estilo e na construção das histórias, mas o fato de, em algumas delas, a autora ter atingido a excelência literária, ter conseguido tocar além do que as suas palavras pretendiam, é algo a ser destacado. Considerando-se a escolha dos assuntos, a abordagem mais antiquada da crônica como meio de reflexão e não forma de riso fácil, assim como a visão sensível do mundo e a ausência de medo de expor as suas opiniões, posso dizer que vale a pena esperar os próximos  trabalhos da Kelli Pedroso, pois a trajetória dela começa de forma muito alvissareira.

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