A editora Dublinense – que editou e lançou “O Homem Despedaçado” – pediu para que eu fizesse um pequeno texto falando sobre um “guilty pleasure”, para disponibilizar no Facebook. Como sei que alguns leitores não possuem perfil no Facebook, vou colocar o texto aqui no blog:

De todos os guilty pleasures que tenho (e são vários, começando pelo Rick Astley, passando por Meatloaf e terminando em filmes da Meg Ryan), o mais definidor da minha vida é Star Trek. Sim, eu sou um trekker. Não imaginei que era tão confortante fazer esta confissão assim, em público, mas é. Até que enfim posso admitir que, em situações de nervosismo extremo, levo dois dedos ao ombro e penso “um para subir”, rezando pelo teletransporte salvador. Agora posso admitir meu conhecimento ainda precário do dialeto klingon. Posso também confessar que o motivo real para adorar o chá Earl Grey é o fato dele também ser o preferido do Capitão Jean-Luc Picard. Contudo, não sou trekker o suficiente para andar por aí vestido com as roupas da Frota Estelar, apesar de saber as diferenças de cores entre os uniformes do capitão, do alferes, do imediato e do almirante. Sou um trekker recalcado, do estilo daqueles que não se identificam e surpreendem o interlocutor usando frases ou expressões retiradas do universo Star Trek. Um dos meus mais rematados pesadelos ainda é o dia em que alguma pessoa vai se aproximar e dizer que leu meu livro e que encontrou trechos, personagens e citações que existem no Star Trek. Estarei tão desmascarado quanto os bandidos do Scooby-Doo (meu Deus, mais um guilty pleasure, será que eu tenho algum pleasure normal?).

Sim. Como gosto de dizer, tudo que escrevo é verdadeiro. Não me lembro de ter escrito até hoje alguma coisa fictícia. Apesar de alguns leitores afirmarem que flerto com o absurdo, acredito que o absurdo não está devolvendo os olhares e sorrisos, pois me sinto absolutamente real – até um tanto quanto enfadonho.

E este medo do desmascaramento também é bem real. Star Trek está entranhado demais na minha formação para que possa saber o que é pensamento original e o que é a digestão criativa de algum episódio perdido nas gavetas e prateleiras da memória. Por muito tempo, esta reflexão me deixou muito preocupado, mas hoje consigo conviver em paz com o processo de assimilação imaginativa para saber que não é plágio (mas sempre fico perto da porta, caso tenha de fugir de uma horda de trekkers fanáticos dispostos a me confrontar).

O que não entrou neste texto, por causa das suas limitações de espaço, é o fato de que, por alguma anomalia genética (ou por algum estranho capricho divino, pois consigo ouvir as risadas de um demiurgo na hora em que resolveu agregar tal característica no cadinho com que me formou), não consigo fazer o sinal vulcano de “vida longa e próspera”. Nem eu, nem meus irmãos. E não foi por falta de tentativa ou treino: por muitos anos tentamos ajustar os dedos, mas eles insistem em nos desobedecer e não atingir o ângulo correto.

Começo a me consolar com a ideia de que não farei o sinal. O mundo é quem sai perdendo diante desta constatação, pois não poderei desejar “vida longa e próspera” para ninguém. Para minha raiva, quando confesso este fato para as pessoas, elas fazem o sinal com uma mão, depois com a outra, depois com as duas ao mesmo tempo. Algumas pessoas fizeram até com os dedos dos pés. A maldade humana realmente não tem limites.

Não sei o motivo, mas, quando vejo as minhas patéticas tentativas de fazer um sinal que a genética sentenciou a não realizar, só consigo lembrar de Moisés atravessando o deserto e morrendo antes de chegar à Terra Prometida. Entendo muito bem o sentimento que deve ter percorrido o corpo do patriarca ao ver a última, a derradeira colina, e saber que não poderia subi-la, não poderia ver o local que por tantos anos sonhou chegar. Toda vez que vejo meus dedos e tento contorcê-los com toda a força da mente, sendo negado e escarnecido pelos músculos, tenho plena noção de que, inobstante aquilo que algumas publicidades e livros de auto-ajuda dizem, certas coisas não podem e não devem ser feitas. A diferença é que me resigno diante desta constatação, e sinto que o não-fazer também é parte integrante da vida. E assim, como Moisés, eu olho a colina de areia representada pelos meus dedos e morro contente, feliz, sabendo que não deixo de ser o que sou por causa deste detalhe.

3 comentários em “Diante da colina de areia

  1. É difícil fazer o sinal. Eu consigo somente em cima de uma mesa, porém não consigo manter os dedos separados quando levanto a mão.

    1. Eu não consigo. Mas continuo achando mágico o não conseguir. Talvez exista um destino ou um desígnio divino até nas coisas que não consgeuimos fazert, ou nas Xangri-lás que não estamos fadados a encontrar. 🙂

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